1993 faz parte de um período de cerca de 5 anos, entre 1990 e 1995 ( e em certa parte 1988 e 1989 também) , em que o death metal explodiu ao redor do mundo todo. Selos como Nuclear Blast, Earache Records, Wild Rags e vários outros cavaram fundo nas mais obscuras profundezas e trouxeram à superfície um número impressionante de bandas que estavam com o sangue e o ódio em ebulição e não é coincidência que esses anos viram o lançamento dos maiores clássicos do estilo. Bandas como Deicide, Napalm Death, Monstrosity, Entombed, Malevolent Creation, Invocator, Gorefest, Cannibal Corpse, Obituary, Nocturnus, Acheron, Immolation e principalmente o Morbid Angel gravaram álbuns que simplesmente moldaram o estilo pelos anos que viriam e deixaram claro os críticos que faziam comentários depreciativos pipocar em diversas publicações ao redor do mundo.
Essa influência e ese estilo se tornaram um norte para bandas do mundo inteiro e milhares de jovens atenderam esse chamado e começaram a se unir em torno do obscuro, em torno da brutalidade e procuraram construir seu nome focados no metal da morte como forma de arte. Alguns desses jovens músicas se encontraram na quente Natal, capital do Rio Grande do Norte e decidiram seguir também essa estrada. Assim nascia o SANCTIFIER, ainda em 1989, ainda com outro nome, mas com a ideia fixa de criar música brutal na linha de suas bandas preferidas. Em 1993, depois de duas demo tapes ensaio, o SANCTIFIER finalmente se lançou à tarefa de gravar e lançar a sua primeira demo tape oficial. Eu lembro muito bem da época pois tive a sorte de estar presente em alguns momentos dessa gravação que ocorreu no famigerado estúdio de Hubert, um europeu conhecido pelo seu mal humor e excentricidade. Não lembro realmente se ele era suíço ou alemão/austríaco, mas sua casa sempre fechada, com cortinas fechadas e clima obscuro ajudou a criar diversas lendas sobre sua origem que nós ficávamos conversando sobre em alguns momentos de bebedeira.
Algumas dessas memórias hoje em dia são meio nebulosas, mas tenho quase certeza de que o guitarrista Alexandre Emerson não pôde participar da gravação por alguma razão, sendo todas as guitarras gravadas pelo outro guitarrista Kleberson Porpino. Quando esse material ficou pronto a primeira coisa que me chamou a atenção, já que alguns poucos felizardos de Recife tiveram o privilégio de ter acesso à essa demo ainda dentro do estúdio e antes do lançamento, foi a grande qualidade sonora que a banda conseguiu extrair de um estúdio com grandes limitações. Era perfeito para bandas undergrounds, mas algumas coisas tinham que ser feitas na garra. Nascia assim aquela que é a minha demo tape preferida na história do death metal nacional: “Ad Perpetuan Rei Memorian”.
Era inacreditável o que havia sido criado por aqueles 5 amigos de Natal, uma cidade tão longe do eixo Rio/SP/Minas, que era onde a cena metal nacional tinha mais público, mais estrutura e mais holofotes. Até hoje cultivo um sentimento de ódio pela maneira como um material como esse, gravado em 1993, não teve a devida atenção das gravadoras nacionais da época. É mais do que sabido que, naquela época, existia um latente bairrismo e um grande preconceito pela cena Nordestina. Não tanto por parte dos headbangers Brasil afora, mas o mainstream nacional (leia-se gravadoras, revistas, etc) raramente enxergavam qualquer coisa fora de seu círculo de interesses locais e puxa-saquismo comercial. Mas isso é uma conversa para um churrasco com alguns engradados de cerveja para acompanhar.
“Ad Perpetuan Rei Memorian” foi lançada em 1993 e trazia uma banda com uma influência gigantesca do Morbid Angel, mas ainda com características muito próprias em sua construção musical. Os riffs eram de uma qualidade rara em termos de death metal nacional, assim como os andamentos de bateria. É verdade que a brutalidade presente não era algo fora da realida nacional, já que bandas como Sárcofago, Sextrash, Expulser, Cihrrosis, Holocausto, Headhunter DC, entre outras, já trilhavam esses caminhos, mas aqui a brutalidade tomava outro corpo, muito mais influenciado pela sonorida brutal e técnica do death metal americano do que na selvageria do metal da morte brasileiro. No fim era death metal como deve ser, brutal, pesado, técnico e com uma qualidade fora de qualquer debate.
Com apenas três músicas, “Unholy Ancient Masters”, “The Cycle of the Entity” e “Archon Ton Daimonion”, essa demo realmente foi algo surpreendente. A parte lírica começou a utilizar a mitologia criada por H.P. Lovecract e seus mitos de Cthulhu e isso foi um diferencial positivo. Os vocais de Luiz Claudio nessas músicas realmente detonaram tudo e essa demo se tornou um item que eu ouvia diversas vezes ao dia. Uns dois anos depois (não lembro agora se foi em fins de 94 ou início de 95) fui convidado a entrar na banda e me tornei o vocal do SANCTIFIER por muitos anos (contando aí o período em que a banda usou o nome Hellspawn) e poder executar nos ensaios e ao vivo essas músicas que tanto apreciava foram uma honra gigantesca.
Tempos depois “Ad Perpetuan Rei Memorian” acabou sendo lançada em um 7´ep pelo selo grego Molon Lave Records (episódio polêmico que envolveu até mesmo o ex-baixista do Rotting Christ), mas já sob o nome HELLSPAWN.
Mas uma coisa que não pode ser mudada ou questionada é a envergadura dessa demo tape e sua qualidade, ainda mais hoje em dia, passados quase 30 anos desde o seu lançamento. Ela é um dos lançamentos que ajudaram a moldar o death metal nacional ao lado de tantos outros nomes e lançamentos da cena extrema nacional. Só nos resta continuar perpetuano a memória de tudo isso…. ouvindo “Ad Perpetuan Rei Memorian” em alto volume…
Como disse o poderoso HEADHUNTER DC (banda com o qual o Sanctifier tocou no lançamento de “Ad Perpetuan Rei Memorian” e que gravou uma música dessa demo tape em um split 10´ep): LONG LIVE THE DEATH CULT !
E nada melhor do que terminar essa matéria com um depoimento do próprio Sérgio “Baloff” Borges do Headhunter DC sobre essa demo tape. Com a palavra, Mr. Baloff:
“(…)Em Outubro de 1993 o Headhunter D.C. caiu na estrada (sim, “na estrada” mesmo, pois avião naquela época era pra rico… rs!) para fazer dois shows em sequência durante a turnê do “Punishment At Dawn”, um em Fortaleza/CE e outro em Natal/RN. Na ocasião eu fiquei impedido de acompanhar a banda, pois havia fraturado a clavicula num stagedive kamikase aqui em Salvador, então o Zé Paulo ficou encarregado de fazer os vocais em ambos os shows, assim como já havia acontecido em nossa primeira apresentação no Rio de Janeiro em Abril do mesmo ano, quando eu também não pude viajar por ter adquirido hepatite – anno maledictum… tá bom ou querem mais? ☹️ Nesse período já havíamos retornado de nossa temporada em BH, quando moramos quase todo o ano de 93 na capital mineira, e quando a banda retornou desses dois shows, imediatamente Zé Paulo me ligou pra me passar a devida resenha da viagem, e durante o papo comentou comigo que havia ganhado a demo de uma banda de Natal que havia sido ‘open act’ do show de lá. A ênfase em suas palavras e o seu entusiasmo ao se referir àquela banda e ao comentar sobre o som da mesma me chamaram muito a atenção (algo como “Banda de fuder, Loko! Com umas metrancas violentas, riffs mórbidos e memoráveis a lá Morbid Angel e vocal carregadão! Você vai pirar!”), e não tardou muito para que eu fosse lá na casa dele pra sacar essa demo, ansiosíssimo. A banda em questão era o Sanctifier, da qual já havia ouvido falar em alguns zines da época, e a demo, “Ad Perpetuam Rei Memoriam”. Em resumo: Zé Paulo estava corretíssimo no que disse e até hoje a considero como uma das 5 melhores (se não a melhor) demos de Death Metal já lançadas no Brasil, uma obra à frente de seu tempo. Não foi à toa que anos mais tarde gravamos um cover de “The Cycle of the Entity” para um split 10″ EP com esses devotos de Cthulhu!”
(Sérgio “Nekrobaloff666” Borges – Headhunter Death Cult, 11 de Maio de 2018 – extraído de sua resenha para o álbum “Lone Wolf Syndicate” do Sanctifier)
Eu ainda não hesitaria em reiterar de que se tratava mesmo de uma obra bem à frente de seu tempo aqui no Brasil, pois até então ainda não havia se ouvido algo tão, digamos, rebuscado e complexo em termos de riffs memoráveis de Death Metal inserido num conceito mórbido e brutal e de abordagem idem, digno dos melhores momentos “morbidangelianos” era 86-91. A escolha de “The Cycle of the Entity” como cover para o split 10″ de 2007 reflete nossa total identificação com a música do Sanctifier e com a demo em questão, uma mostra de como o verdadeiro Death Metal nasceu para ser, com seus riffs memoravelmente intrigantes e retorcidos, vocais morbidamente guturais e metrancas na melhor escola brasileira de blasts noventistas via SexTrash, Expulser e o próprio Headhunter D.C.. Um verdadeiro deleite para quem realmente entende a magia do Death Metal! Timeless masterpiece!!!
(Sérgio “Nekrobaloff666” Borges – Headhunter Death Cult, 30 de Maio de 2020)
Ouça abaixo a demo tape “Ad Perpetuan Rei Memorian” (1993):
Ouça a versão de “The Cycle of the Entity” executada pelo Headhunter DC no split 10´ep “In Deathmetallic Brotherhood”: