Mais de duas décadas estão entre “Testimonios” — a primeira obra-prima da banda andina KRANIUM e “Uma Tullu” — sua nova, imersiva e encantadora experiencia sonora. Um trabalho tão grandioso quanto diversificado, aprofundado em sua própria cultura. Dotado de uma musicalidade muito particular e distintiva, justamente por costurar artes, costumes e tradições de uma forma totalmente honesta, consistente e criativa. A pluralidade é a maior qualidade e também a insígnia do trabalho que esta banda desenvolve há mais de 35 anos.
Diversas influências permeiam a sonoridade do KRANIUM, dentre elas, o Doom Metal e o Stoner (Universidade Black Sabbath), o Heavy Metal, o Hard, o Progressivo setentista e o Folk (no sentido orgânico e amplo do mesmo), sendo este último, o elemento mais marcante e expressivo nas composições da banda. Seus registros possuem uma identidade muito versátil e transitam com propriedade por entre todas as influências citadas, sempre evocativos e sempre indo além das possibilidades. Cruzando informações e territórios; acelerando e desacelerando estruturas. Às vezes desafiadores e prismáticos — às vezes recolhidos e intimistas, mas sempre mágicos.
A concepção de “Uma Tullu” é quase uma odisseia, sabendo que o mesmo começou a ser gravado em março de 2009 e terminou em janeiro de 2020. O tecladista e vocalista Khriss Meléndez cuidou de todos os aspectos da produção e o artista Julio Chimey (Devaztador, Tormented) traduziu o conceito do disco em cores e traços (a capa por si só já é uma obra de arte). Os temas e a ilustração são equivalentes.
O roteiro tem seu início numa introdução que é conectada diretamente à primeira faixa “Santa Inquisición” — composição essa que denuncia a abordagem do disco; a ignorância humana travestida de religião. Cantos gregorianos, sons de fogo e tortura; gritos de dor e pranto precedem a já citada faixa; um Heavy Metal furioso e pesado, marcado por riffs poderosos, bateria visceral e os vocais distintivos e fortes de Khriss Meléndez. Aos (02:52) a música ganha preenchimentos progressivos que logo são rasgados por um solo majestoso de guitarra. Uma abertura perfeita diga-se. “Kranium Peru Carajo!” (bem definido por eles mesmos). “El Vago Del Cementerio” não é menos poderosa. Seus primeiros minutos são incríveis, guitarras e teclados juntos criando uma massa sonora gigantesca que logo se recolhe a algo mais sombrio e contido, mas não menos potente. O solo é outro momento de êxtase. “Catacumbas” é a suíte do trabalho; mezzo Progressiva/mezzo Psicodélica — repleta de quebras e de melodias delirantes que vão do Heavy em estado puro até uma espécie de jam. Seus mais de 8 minutos soam como se um vasto catálogo de ideias fosse condensado dentro de uma única composição. Ser coeso e ousado está no DNA do KRANIUM. “La Tapada” é uma ode ao Rock Progressivo setentista; suave e quase tímida, mas riquíssima em detalhes e camadas. A habilidade destes peruanos em criar cenários musicais é realmente notável. Atenção aos minutos finais e perceba que a música é realmente o último resquício de mágica que ainda existe nesse mundo miserável.
O restante do disco segue igualmente magnifico e sem perder seu folego de qualidade, seja na breve “Viuda Negra” ou nos riffs sabbathicos de “Presbítero Maestro” (marcada por guinadas monumentais de bateria e baixo volumoso). O Folk se faz de alma na belíssima “Rio Hablador” (uma composição que consegue ser triste e encantadora ao mesmo tempo). “Waqaychaqninchik El Apu Mayor” é mais uma viagem a ancestralidade. A música abre como uma narração que dura exatos 40 segundos e depois guia-se instrumentalmente até seu fim (poesia do desconhecido). Os sons da introdução voltam ao fim sob a forma de “Outro”, e infelizmente “Uma Tullu” chega a seu último pulsar entre sons de chamas, sinos, lâminas sendo desembainhadas e gritos. Um final um tanto estranho, mas cabível à dissertação musical construída pela banda.
Mais um marco na trajetória da KRANIUM — um lançamento marcado por diversas qualidades e atraente sob os mais diversos ângulos. Coeso, esparso e corajoso como a banda que o escreveu. Um mosaico de melodias. Sem mais, que venha logo um terceiro álbum quanto antes.
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